"Quem se situa nunca se perde. Nem se surpreende”
Aprendi que “antes de tudo é preciso situar-se”. Nunca vi essa máxima escrita, nem ensinada, apenas falada, mas sempre ouvi dizer que é a mais preciosa das sabedorias da vida carioca. Onde estamos, quem manda, qual é a regra do jogo, como se entra, como se sai. Estou convencido de que não há sabedoria mais objetiva do que se orientar na ida do que permanentemente indagar – Quem? Como? Onde? Por quê? – como ensinou o grego Aristóteles.
No meio do surpreendente alvoroço e da tremenda surpresa da nomeação de Elmo Farias Serejo para governador de Brasília, e da minha convocação para ser seu homem de confiança na administração do Distrito Federal, jamais deixei de me situar. A realidade brasileira naquele instante – em março de 1974 – exigia atenção especial. Estávamos no auge do regime militar, saindo do governo Médici. A descontração ou “distensão”, expressão preferida pelo cientista político americano Samuel Huntington, só aconteceria a partir de 1977, em meados do governo Geisel. Mesmo assim, condicionada. A abertura deveria ser “lenta, gradual e segura”, ditou o próprio presidente que podia ditar, como demonstraria para a História, decretando o fim do AI-5 e do próprio regime militar. Ou seja, usando os próprios poderes absolutistas que o AI-5 lhe outorgava, Geisel decretou o fim desses poderes.
Um gesto que o consagrou e ao período da vida brasileira que tive a honra de participar, modestamente, num cargo de segundo escalão.
Mas em março de 1974, não dava para esquecer a dureza política do momento. Muito menos adiantava fantasiar. Seria iludir-se. Os militares haviam tomado o poder, estavam gostando, não pareciam disposto a abandoná-lo e, principalmente, por mais que se cercassem de tecnocratas e especialistas, não conseguiam perder suas características profissionais de disciplina, hierarquia, planejamento rígido. Aliás, com exceção do general Golbery e de poucos oficiais entre os muitos que assumiram responsabilidades civis, e que eram políticos extraordinários (muitos deles tinham mais sensibilidade política que os próprios políticos civis profissionais), a regra era os militares se desnaturarem ao afastar-se da caserna para assumir funções no serviço público. Renegavam justamente sua cultura profissional. É um paradoxo, mas eu compreendo, por ter enfrentado na prática o mesmo desafio: o exercício do poder civil não é fácil, nem para os civis.
Ou seja: quando negaram sua cultura militar para se comportar como políticos e civis, abandonaram instrumentos de organização com os quais já estavam familiarizados e perderam boas chances de promover mudanças e moralizações que pretendiam realizar no Estado brasileiro.
Entre os chamados instrumentos administrativos empregados no Exército brasileiro, no dia-a-dia dos quartéis – e que aprendi a utilizar no meu serviço militar, o Quadro de Trabalho Semanal (QTS), pode ser o mais singelo, mas é certamente de uma eficácia extraordinária, além da facilidade de ser por todos entendido. Levei-o do quartel para a vida civil e apliquei-o com êxito na primeira oportunidade que tive de assumir responsabilidades executivas na empresa privada. Considero-o a melhor aprendizagem do meu serviço militar obrigatório.
Tornar-se soldado não era uma escolha, mas um obstáculo que precisava transpor. Também não me revoltei, não me lastimei; pelo contrario, mergulhei de cabeça para tirar da minha passagem pela vida militar tudo o que poderia aprender.
Fui soldado e cabo do Exército na Vila Militar, em Deodoro, Rio de Janeiro. Servi no Segundo Regimento de Infantaria (2º RI), o glorioso Dois de Ouro, seu festejado cognome.
Fiz o curso de sargento justamente quando o primeiro batalhão do 2º RI (um regimento de infantaria era formado por três batalhões) estava sendo preparado para ser enviado à África do Norte e participar da Missão de Paz da ONU no Egito. O Batalhão Suez – como era chamada a tropa brasileira – era constituído 100% por voluntários, mas a seleção incentivava os melhores recrutas. Fui chamado e estimulado, ganhava-se em dólar e todo mundo fazia um pé-de-meia, mas descartei a oferta. Eu estava na tropa para cumprir o dever de cidadania, tinha pressa em iniciar minha vida civil plena e precisava do Certificado de Reservista, documento essencial para cair no mercado de trabalho. Poderia ter cursado o CPOR, Centro Preparatório de Oficiais da Reserva – aberto para quem possuía diploma de curso médio – e sairia aspirante, com chances de estagiar na tropa como oficial por até dois anos, ou mais, como aconteceu com alguns amigos. Mas eu não estava procurando um passatempo, eu queria dar adeus à adolescência, à disponibilidade de solteiro, começar a viver de verdade minha vida adulta, casar. Ora, o CPOR durava dois anos, enquanto como soldado na tropa, seriam apenas 12 meses.
A vida na caserna, sem dúvida, é dura – como demonstrou o poeta Alfred de Vigny, em Servidão e Grandeza Militares, no século XIX – mas o tempo passa mais rápido quando o soldado a enfrenta com seriedade, principalmente consciente de que é um período finito. Não queria me profissionalizar, a caserna não era a minha vocação. Mas cumpri meu serviço militar com dedicação. Fiz os cursos regimentais, fui promovido a cabo e minha boa classificação no curso de sargento premiou-me: meu nome foi incluído na primeira lista de desligamentos da tropa. Como eu desejava.
Sempre recordo os critérios para liberar os recrutas, especialmente os desesperados, como eu, que não viam a hora de retornar à vida civil. Ou, mais precisamente, iniciá-la, pois estávamos todos com 19 anos, começando a maioridade. Os primeiros reservistas a serem liberados – dispensados na “primeira baixa” – são os melhores. Quem for “zerado” – isto é, não tiver punição nas suas “alterações”, tem prioridade no desligamento da tropa. Experimentei a vantagem de haver cumprido a minha parte e pude desfrutar o prêmio.
Aliás, como eram transparentes e estáveis as regras do quartel! Tudo era previsível, e até as punições levavam em consideração atenuantes e agravantes que todos conheciam. Por isso, nunca entendi por que o regime militar de 1964 não aplicou esse princípio sábio – as regras do jogo são sempre cumpridas, jamais alteradas por circunstâncias e interesses pessoais – quando assumiu responsabilidades do governo civil.
Quase todos os militares no poder preferiram desprezar suas ferramentas profissionais, como esse singelo QTS, que aprendi com eles. Ouso dizer que até na repressão política fazia falta a boa doutrina da caserna, que não confunde disciplina com violência, rudeza com grosseria, firmeza com insolência. Pelo menos foi o que me ensinaram e vi ser praticado como regra no 2º RI, na Vila Militar. Naturalmente, com as exceções que o confirmavam.
Tive a impressão, naqueles dias de submissão do poder civil, que os militares vivem uma duplicidade perigosa na relação com o civis. Ou endurecem, tentando submeter irracionalmente a sociedade aos padrões espartanos da sua disciplina profissional e aí gera um clima de guerra, incompatível com a vida em tempo de paz. Ou se perdem, negando sua própria cultura. O mundo civil trata os militares com uma arrogância histórica, principalmente quando pressente formas de submetê-los, como fizeram com o romano Caio Júlio César. Mais ou menos o que os chamados tecnocratas fizeram com os chefes militares brasileiros no regime de 64.
Aquela altura, dispensado do Exército, tinha aprendido e trouxe comigo a técnica e a prática de planejamento das atividades rotineiras do quartel, que com adaptações naturais, tornaram-se o meu sistema pessoal de administrar. Foi justamente do Quadro de Trabalho Semanal (QTS), ferramenta da caserna, de que me vali decisivamente na Casa Civil do Governo do Distrito Federal.
Trata-se de um dos mais simples instrumentos para evitar o entorpecimento das rotinas, sem deixar de realizá-las. Não foi difícil transportá-lo para o ambiente do Palácio do Buriti. A partir do elementar QTS, tudo funcionava. Horários conhecidos, tarefas determinadas, agenda administrada com rigor, não antecipava nem precipitava nada. Com isso, criou-se uma grande margem de tranqüilidade tanto para o governador exercitar seu programa de construções que complementavam Brasília, como para todos os seus colaboradores tocarem suas tarefas administrativas.
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Nosso QTS no Palácio do Buriti era definido às segundas-feiras. Tudo era mapeado, inclusive com a participação do cerimonial, secretaria particular e segurança. Por isso, raramente éramos surpreendidos por eventos, mesmo sem termos sido notificados. Graças ao QTS, todo mundo no gabinete sabia o que fazer, quando e como.
Essa metodologia de organização racional do trabalho também me qualificou para tratar com os militares quando precisei lidar com eles do outro lado do balcão, logo depois de deixar o 2º RI e bem antes de chegar ao Governo do Distrito Federal.
Foi mera coincidência, no meu primeiro emprego depois que deixei o Exército, ter justamente de tratar com militares. A Visor Editora e Publicidade, de propriedade de Benedabi Hassi Rocha Martins, editava as revistas da Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende, e da Escola de Cadetes da Aeronáutica, no Campo dos Afonsos, no Rio, que ainda não havia se transferido para Pirassununga, em São Paulo. Eram publicações anuais, verdadeiros álbuns com os registros das turmas que se formavam naquelas instituições de ensino militar.
A Visor tinha uma espécie de concessão para produzir aquelas revistas. Cuidávamos de tudo, da publicidade à impressão. Os comandos das duas escolas designavam cadetes para tratar das edições. Eles definiam o que desejavam publicar. Nós providenciávamos a revisão, paginação, papel e impressão, inclusive os patrocínios que cobriam as despesas. Ainda estávamos no tempo das máquinas impressoras planas, dos clichês, a pré-história das gráficas modernas e eletrônicas. Fazer uma revista luxuosa, em papel cuchê, não era fácil nem barato.
Era uma revista por ano, tanto no Exército, como na Aeronáutica. Circulavam por ocasião das formaturas dos cadetes, mas exigia uma operação de 12 meses. Os comandos se empenhavam, ajudavam nos contatos com os anunciantes. Os estabelecimentos militares não tinham verbas próprias para custear as revistas, que eram pagas com anúncios e patrocínios.
A chamada Declaração de Oficiais – a formatura anual das academias militares daquele tempo – se constituía em acontecimento nacional, com a presença do presidente da República e as atenções da sociedade. As revistas funcionavam como uma das mais apreciadas lembranças dos cadetes declarados aspirantes-a-oficial, no dia da formatura, quando eram lançadas e distribuídas.
Fiz muitos amigos na área militar. Quando me casei, em 1961, o comando da Escola de Cadetes da Aeronáutica formou uma comissão de três cadetes, com seus belos uniformes, para representá-la. Eles faziam parte da turma do 2º ano. Em 2005, passados 44 anos, encontrei-me em Brasília com o Tenente-Brigadeiro Astor Nina de Carvalho Neto, então chefe do Estado Maior da Aeronáutica e eu chefe do gabinete do Ministro das Comunicações, Eunício Oliveira. Emocionei-me. O brigadeiro Astor, com suas quatro estrelas de oficial-general da Força Aérea, concluindo brilhante carreira na FAB, havia sido um dos cadetes que compareceram ao meu casamento.
* Jorge Motta tornou-se um dos mais competentes executivos do serviço público.
terça-feira, 6 de julho de 2010
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