Nunca compreendi muito bem o termo “pegar ‘fulano’ para cristo”. A condenação, representada pela crucifixação, talvez seja parte de um processo onde seu exemplo renderá o desenvolvimento de toda uma nova mentalidade. Uma mentalidade superior aos ensinamentos anteriores. Essa mesma relação de envolvimento humano-metafísico repete-se e espelha-se em vários aspectos de nossas vidas. Na verdade, elas são determinantes nesse processo.
Talvez o maior ensinamento tácito que tenhamos recebido é que não precisamos de oponentes para sermos felizes. Países não-beligerantes agem dessa forma. Talvez esse sentimento de paz, numa medida muito própria do que acreditamos possuir por paz, leve-nos muitas vezes a afirmar que Deus é brasileiro.
Por que negá-lo? Que melhor momento para a paz do que aqui? Que época é melhor do que agora?
O inventor do miojo deixou um aprendizado muito sincero: ”Enquanto houver comida, a paz está assegurada”. Há algo fisiológico no ser humano que o determina assim.
A saciedade é um dos motivos de apaziguação. Apaziguado o estômago, a mente ou o espírito é que o ser humano médio adquire o melhor estado de reflexão. Uma mente desprovida de energia é como um motor poderoso sem combustível. Inútil, mas com potencial.
Transpondo essas constatações para a sociedade da qual participo, não é de se estranhar a desmotivação dos rostos de alguns grupos. Se é fácil receber um sorriso natural e afável nas quadras do Plano Piloto, não se o percebe igualmente no Pedregal. Talvez com o decorrer do tempo seja possível em qualquer lugar do Distrito Federal encontrar gente disposta, positiva e atuante. Essas características, entretanto, estão relacionadas com a qualidade de vida de cada indivíduo.
É no Serviço Militar brasileiro que há teoricamente a participação isonômica de três, das quatro classes sociais básicas: filhos dos ricos, pobres e da oscilante classe média. Dentro dos quartéis homogeneizamos a convivência de três tipos representantes da evolução financeira e social de nosso país.
Como se distribuem esses indivíduos? Como estabelecer uma linha média de suas características pessoais e potenciais? No modo como adquirem e gerenciam seus recursos.
Os filhos dos ricos evitam servir. Vêem a atividade como pouco rentável e buscam a realizar as atividades que dão maior retorno pessoal. Raros os que decidem dedicar-se ao meio militar. É mais fácil encontrá-los entre os oficiais superiores e generais. Não constitui regra, entretanto. Mas os poucos exemplos da classe pobre que atingem as maiores esferas de decisão sempre são referenciados por sua distinção. O restante é o que chamamos de “moita”. O cara que evita aparecer.
Os filhos da classe média costumam ingressar em uma de duas situações: via oficialato ou pelas escolas de formação de graduados. Normalmente, o serviço militar não é sua melhor opção, mas costuma ser a válvula de saída quando a pressão da competição por resultados se mostra superior aos seus esforços.
Os filhos dos pobres costumam ingressar nas forças como graduados ou praças. Não raro demonstram capacidade e passam a integrar o oficialato. A capacidade “política” desses raros exemplos definirá se atingirá os grandes comandos ou permanecerá confortavelmente em seções estáveis. Na grande parte das vezes, entretanto, permanecem soldados. As condições de ascensão de soldados são indiscutivelmente mais difíceis que as oferecidas aos sargentos. Isso advém de seu desgaste geográfico.
É possível afirmar que grande parte dos oficiais residem a menos de 15 km do quartel. Praticamente dentro da cidade. Isso facilita o acesso de tal modo que não se torne um suplício vencer o trânsito crescente das cidades, permitindo-os acordar confortavelmente a partir das 7:00h da manhã, configurando uma noção muito própria de classe média. Já os graduados moram em média até 25 km de seu trabalho. A distância adicional é suprida pelo empenho de suas energias financeiras na aquisição de veículo próprio. Muitos fazem de seus veículos próprios objeto do serviço e buscam ma medida do possível, permitir-se dessa forma ao máximo de sono possível. Buscam viver como a classe média. Soldados residem em médias superiores a 30 km do quartel. Não raro chegam atrasados, e no grande grupo de escoteiros, onde massificamos os filhos de nossos integrantes, são os mais punidos. A diferença é que do tempo quando o regulamento foi elaborado para os de hoje há muitos obstáculos a transpor para evitar dissabores administrativos.
Perceba-se que em nenhum momento, citei a existência de ricos no quartel. Minha definição particular de rico estende-se a pessoas que acordem naturalmente, sem o desespero da falência a que causaria sua ausência em qualquer envolvimento importante.
Considero rico, por exemplo, qualquer playboy dirigindo um bom importado nas ruas do Lago Sul. O que o torna rico em meu ponto de vista não é o relógio singular, a qualidade inegável de suas roupas ou o veículo confortável. É o tempo livre que suas condições no país o oferece. E o país, assim como seus pais, oferece mais ainda: ele pode dormir despreocupado toda noite, contando com a eficiência de seu governo para que possa dormir sossegado.
Apreciei essa distinção certo dia, ao abastecer “minha” motocicleta. As aspas são pertinentes, se contar do fato que a moto está registrada para fins de multa em meu nome, e mesmo que já estivesse quitada continuaria sendo paga por intermédio de meu “direito de utilizá-la”. Você pode quitar a moto, mas porta afora sua casa, ela jamais será totalmente sua. Se você não pagar para um terceiro, ele tomará seu veículo. E leiloará, e ficará com a sua grana.
Logo, a moto não é minha, é do Brasil. Seja lá esse quem for.
Enfim: enquanto abastecia a motocicleta do Brasil, cortou-me a frente um camarada com toda pinta de um californiano. Bermuda, óculos extravagantemente de bom gosto e um item importante: relógio. Quem usa relógio muitas vezes não conta com o tempo, e sim dispensa carregar consigo um aparelho celular. Rico aparenta necessidade de comunicação.
A idéia que eu tinha de um tipo “playboy” ainda era a de um Tom Selleck. Quarentão, numa Ferrari vermelha. A Ferrari não era do “Magnum”, era carro da empresa. O rico, realmente, era o Higgins. Um tipo soberbo que causou uma pré-concepção da personalidade dos proprietários desses veículos.
Prestei atenção a esse detalhe em outro episódio similar, também durante um abastecimento. De uma Ferrari marrom metálica desceu um modelo de proprietário atual. Pneus extra-largos e tanque completado com gasolina de alta octanagem, ele retirou-se com a tranqüilidade de quem conduz uma perua da família.
Presumi que em ambos os casos, são filhos de gente milionária. E tem, nas imediações de sua vizinhança, diversos postos de serviço onde há um número a ser preenchido. Por dispositivos sociais, estão desobrigados de servir ao Estado em qualquer uma de suas inúmeras guardas.
Ricos estão desobrigados a compor o Serviço Militar Inicial, justamente porque não há espaço para eles. Sobra aqui fora para viverem uma vida plena. A lei de serviço militar deixa de integrá-lo, suplantada por legislações diversas. Seu sono está assegurado.
Enquanto isso, abastecíamos os veículos. Havia naquele momento como o há qualquer dia e momento do ano, uma guarda. Ao transpô-la, quase pude identificar o desejo do sentinela. Liberdade. Quem sabe a liberdade de poder deixar seu posto a quem o deseje e sair de moto por aí. O soldado sonha em ser classe média, e desconhece os sonhos de seu estágio superior.
Saí do posto antes do playboy. Não consegui convencer-me de qualquer motivo para queixar-me de sua existência, muito pelo contrário: lembrar-me da legislação de serviço militar fez-me crer que no processo democrático, nada mais justo que permitir aos nossos reservistas o direito de estar bem nutridos, descansados e prontos para a guerra.
Há vários modos de medir o valor militar. Um dos que mais aprecio é o jurídico. Outra é o funcional. O julgamento de cada valor é preordenado por nossas legislações. Mesmo em transgressões disciplinares administrativas, há em alguma esfera, o julgamento. Os dispositivos legais a que o brasileiro se sujeita quando se alista.
Para os alistados no Serviço Militar da Aeronáutica, vale a RMA 33-1, a consolidação da Lei de Serviço Militar. Interpretando a legislação, o serviço militar consiste em atividades que o indivíduo irá assumir como responsável em um quartel. É obrigação de todos os brasileiros, conforme estipulado também em outros regulamentos. Mulheres não são obrigadas ao serviço militar, mas ficam sujeitas a encargos de interesse da mobilização. Armem suas vassouras!
Sua classe não é de acordo com seu signo. É de acordo com o ano em que completa dezenove anos, ou seja: aos dezenove, caso não use saias, já deverá estar por obrigação desempenhando suas funções. Em tempo de paz, ou de guerra.
Diz ainda que você poderá ser voluntário, a partir dos 17 anos. Ao recrutamento.
O recrutamento compreende seleção, convocação, incorporação ou matrícula de órgãos de formação da reserva, e voluntariado, onde serão avaliados os aspectos físico, cultural, psicológico e moral.
Uau.
Isso significa que o cara mais importante quanto ao tipo de gente que entra no quartel é o alistador militar.
Fosse necessário com meu conhecimento de recruta realizar tal função, começaria da seguinte forma: reforçando as guardas. Isso mesmo: através de uma boa seleção, aumentaria o temor público de confronto com nossas guaritas. Colocaria o soldado mais perigoso na guarda.
A questão é que perigoso é uma definição um tanto vaga, dado a diversidade de autoridades que transitam na capital. Uma autoridade tem sempre mania de medir forças com outra eventualmente, checando seu “grau combativo”. Só há um campo onde a moral do indivíduo não tem a menor chance: o relacionamento familiar. Por mais tirano que alguém possa parecer no ambiente profissional, sempre há alguém que o leva por suas paixões.
A maior vingança de um militar contra um civil sempre vai ser o serviço militar obrigatório. Um civil que resida a quinze minutos do quartel economizaria inúmeros processos de atrasos, desobstruindo mesas e decisões. Tudo o que o alistador militar precisa para atrair para a guarda alguém que sabe lidar com o rico é o filho do próprio rico. Preferencialmente alguém que tenha por hábito usar relógio.
E se o Brasil entrar em guerra, sua mulher. Ninguém discorda que se há alguém que exerce mais poder do que os próprios ricos, pobres ou classe média, são suas mulheres – esposas ou não. A verdade é que por trás de um grande homem ou um total fracassado, há uma mulher. Mesmo que a própria mãe.
Exageros à parte, dispositivos semelhantes mantêm o efetivo em baixo desempenho financeiro. No momento em que o jovem atende ao chamado e se alista, de um a quatro anos serão “investidos” em uma atividade. Ao cessar essa atividade, deverão encontrar espaço para convívio com os demais de sua classe. Sua reabsorção pelo mercado de trabalho poderá ser dificultosa ou não.
O país o retribui destacando-o entre os reservistas. No caso de mobilização, quem serviu terá precedência funcional sobre quem ainda será instruído. Alguns retornarão às atividades pelas quais foi instruído e participarão da instrução e administração.
O emprego estará a cargo dos mais modernos. Os filhos de amanhã dos que não serviram hoje.
sábado, 10 de abril de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário